UM CONSELHO CONTRA O CONSELHEIRO
Motivo dos índios guaicurus
A última coisa que Tupã criou, neste mundo, foi o homem.
Havia criado os rios, as plantas, os animais e as aves. Por fim, as tribos. Bondoso, antes de permitir que os homens saíssem a povoar a Terra, mandou distribuir presentes que fossem de utilidade para a vida.
A medida que ia partindo, cada tribo recebia um conselho ou um dom especial. Uma delas aprendeu a cultivar a mandioca e o algodão, para que nos tempos de carestia pudesse viver com o produto das lavouras. A outra foi ensinado fazer canoas e preparar o timbó, para que se dedicasse à pesca.
Ao chegar a vez da tribo guaicuru, já não havia o que dar. Assim, a sua gente saiu pelo mundo entregue a si mesma.
Mas não se conformou com isso. Decidiu pedir a Tupã o favor especial ao qual se julgava com direito. Toda a tribo, homens e mulheres, idosos e jovens, saiu à procura de quem pudesse levar sua queixa ao céu.
Pediram ao vento, que sopra livre e violento pelos descampados, para que, com sua poderosa voz, levasse a Tupã o pedido dos guaicurus.
Mas o vento estava apressado. Passou, encrespando as águas, revolvendo as folhas, e nem sequer ouviu a súplica dos índios.
Pediram ao relâmpago, que rasga o céu e sacode a terra. Mas ele fulgurou e desapareceu, sem lhes dar atenção.
Foram para junto da árvore mais alta da floresta, aquela que quase tocava as nuvens com a sua ramagem, e lhe pediram que nas suas conversas com as estrelas dissesse do desejo da tribo. A árvore, imóvel sob o sol do meio-dia, dormitava e não os atendeu.
Assim caminhou a tribo. Cada vez mais desgostosa. De planta em planta, de animal a animal. Poucos respondiam. Desses poucos, um dizia que suas asas não o levariam tão alto e outro se desculpava alegando que as raízes o prendiam ao chão.
Um dia passaram debaixo do ninho do caracará. O gavião, ouvindo como se queixavam, intrometeu-se:
— Vocês não têm razão!
Os índios estranharam:
— Como assim?! Somos o único povo a não receber de Tupã um favor especial. E contra isso que reclamamos.
O caracará, sempre disposto a tirar proveito dos sofrimentos dos outros, ideou plano que lhe trouxesse vantagem.
— Vocês não entenderam o desejo de Tupã. O presente dado aos guaicurus é maior e melhor do que todos os outros. Se não receberam nada especial é porque tudo quanto existe é de vocês. E de vocês a liberdade de se apoderar do que aparecer em seu caminho. Podem, portanto, caçar e tomar quanto encontrarem e desejarem.
Os índios, admirados e surpresos, pediram ao gavião que explicasse melhor qual o presente que, sem saber, haviam recebido.
O espertalhão repetiu:
— E a liberdade de tomar para si tudo quanto encontrarem em seu caminho e lhes agradar.
Depressa os homens se convenceram de que o caracará tinha razão. O cacique insistiu:
— Então podemos matar tudo o que encontrarmos?
A ave rapineira, certa de que os guaicurus fariam, daquele dia em diante, grandes caçadas das quais ela tiraria a melhor parte, assegurou:
— Sim, tudo!
Rápido, o cacique armou o arco de guerra e visou o caracará.
Percebendo o perigo, o gavião mau conselheiro tentou fugir. Mas ainda não havia aberto de todo as asas, e a flecha partira do arco...
E era uma vez um caracará!
A tribo dos guaicurus tomou para seu símbolo a figura do caracará que os ensinou a caçar, e desde esse dia seguiu de perto os seus conselhos.
DONATO, Hernâne. Contos dos meninos índios. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2006.
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