contos indígenas

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Elisângela Pimenta

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Leitura e interpretação de texto


As serpentes que roubaram a noite

Fazia pouco tempo que o mundo era mundo e que as garras da onça ainda não haviam crescido e já reinava a insatisfação. E isso porque a noite nunca chegava – ela, que iria
permitir que pessoas e animais repousassem um pouco.

O sol brilhava sem parar nos céus e nenhum daqueles infelizes conseguia sequer tirar
uma pequena soneca! Os raios ardentes do sol queimavam tanto durante tanto tempo que
todos preferiam levantar. Apenas o papagaio continuava a protestar, mas tão alto, que toda afloresta o ouvia, porém o sol pouco se importava com toda aquela gritaria e seguia brilhando tão alegremente como antes.

Após um certo tempo, o papagaio ficou rouco, e os outros seres arrastavam-se como
sombras. No leito dos rios quase não se via uma gota d'água a correr.

Felizmente, um belo dia, os índios descobriram quem havia escondido a noite: as serpentes! Elas eram os únicos seres que não tinham definhado, continuavam sadias e
passeavam com um arzinho zombeteiro, como se estivessem guardando na cabeça
pensamentos muito divertidos.

Então, os líderes da aldeia organizaram uma reunião para indicar aquele que deveria ir
falar com as serpentes para que elas libertassem a noite. A escolha caiu sobre o jovem Karu Bempô por ser guerreiro valente e excelente corredor.

Karu Bempô, o mais valoroso dos guerreiros indígenas, foi falar com Surucucu, a grande chefe das serpentes.

A morada de Surucucu ficava escondida no fundo da floresta virgem, embaixo das folhas spalhadas pelo chão, e nem os macacos gostavam de se aproximar daquele lugar
misterioso.

- Quem se atreve a me incomodar? - gritou a serpente, erguendo a cabeça.

- Sou eu, Karu Bempô, o grande guerreiro – respondeu o intrépido representante dos índios e prosseguiu: - Dizem que as serpentes esconderam a noite, darei arco e flechas
como presente do meu povo.

- De que me serviriam o arco e as flechas? - riu Surucucu. - Não tenho mãos para manejá-los. Meu rapaz, tens de me trazer outra coisa.

Após dizer essas palavras, ela deslizou por entre as folhas e desapareceu, e Karu Bempô se viu sozinho.

Voltou à aldeia de mãos vazias, e todos ficaram quebrando a cabeça para descobrir o que dar à serpente.

Finalmente, depois de muito pensarem, imaginaram que uma matraca contentaria a serpente, pois é um objeto que agrada a todos, e nenhum animal possui um objeto desses. Fizeram então uma matraca, cujo som era ouvido para além das planícies e das montanhas. E Karu Bempô pôs-se novamente a caminho.

Dessa vez, Surucucu estava esperando-o.

- Sei que me trazes uma matraca – disse ela. - Evidentemente, não é coisa que se despreze, mas como vou usá-la? Não tenho mãos nem pés...

- Vou prendê-la na tua cauda – disse Karu Bempô, e imediatamente pôs mão à obra. Mas que aconteceu? Ou a matraca tinha perdido a voz ou a cauda da serpente não era suficientemente forte para balançá-la. Quando ela tentou chacoalhar sozinha, ouviu-se apenas um ch-ch-ch-ch parecido com o ruído que as folhas secas fazem quando se espalham pelo chão.

- Não, isso eu não quero. Mas, para que não digam que sou insensível, te darei, em troca da matraca, uma breve noite – declarou afinal a serpente. Deslizou para dentro do ninho e retornou trazendo um saquinho de couro, que entregou a Karu Bempô.

- E que faremos se esta noite não nos bastar? - perguntou ele.

- Deves saber que uma noite longa custa muito caro: nem por dez matracas eu poderia te dar uma – respondeu a serpente.

- Nesse caso, o que queres em troca?

- Conversei com as outras serpentes a esse respeito e decidimos que trocaríamos uma noite longa por uma jarra cheia daquele veneno que teu povo coloca nas flechas.

- Mas que ireis fazer com esse veneno? - recomendou Karu Bempô.

Sua pergunta não recebeu resposta. Surucucu deslizou sob as folhas. A matraca presa à cauda fez-se ouvir por um momento, e depois a serpente desapareceu.

Caminhando lentamente, Karu Bempô retornou à aldeia com o saquinho de couro. Acalentava a esperança de que a noite curta seria suficiente para todos, mas em seu espírito permanecia o receio de um novo encontro com a serpente. Assim que os índios abriram o saquinho, o mundo foi invadido pelas trevas e todos caíram num sono profundo, mas não por muito tempo. Passados alguns instantes, o sol voltou a brilhar e expulsou a escuridão para trás das montanhas e despertou sem piedade aqueles infortunados adormecidos.

Todo dia acontecia a mesma coisa, e logo ocorreu aquilo que Karu Bempô temia; perceberam que uma noite tão curta não bastava para descansar e todos começaram a juntar veneno – às vezes, apenas uma gota – para encher a jarra.

O jovem retornou à floresta pela terceira vez. Dessa vez caminhava com cautela, pois
tinha receio de tropeçar e deixar cair a jarra. Surucucu estava enfiada em seu ninho, e via-se apenas sua cabeça. Ao lado dela havia um enorme saco, bem cheio. Eu sabia que voltarias – disse ela ao recém-chegado. - Vê, preparei um saco que contém uma noite longa.

Karu Bempô entregou-lhe a jarra e perguntou, curioso:

- Escuta, por que as serpentes precisam de veneno?

- Porque somos pequenas e fracas – respondeu Surucucu – e precisamos ter presas venenosas para nos defender... mas não tenhas medo: darei a cada serpente apenas uma pequena quantidade de veneno, a fim de que não possamos fazer mal a ninguém...

- Mas é que... - estranhou o guerreiro, cético.

- Bem, já estás com o saco. Deves levá-lo para a tua aldeia e só abri-lo quando chegares lá. Se soltares a noite cedo demais, a escuridão vai empedir-me de distribuir o veneno a cada serpente como pretendo, e as conseqüências recairiam sobre todo o mundo... Com essas palavras, ela se despediu e, sem tardar, convocou todo o povo das serpentes e começou a distribuir o veneno. Surucucu foi a primeira a se servir...

Karu Bempô voltou para a aldeia, carregando a bolsa com todo o cuidado. Pensava no que a serpente havia lhe dito e por isso não percebeu que o papagaio, excitadíssimo, voava acima dele, gritando:

- Venham ver, ele está trazendo a noite, Karu Bempô está trazendo a noite longa!

Evidentemente, todos os que lá estavam podiam vê-lo com os próprios olhos. Os macacos, loucos de alegria, saltavam no topo das árvores; o jacaré fazia ondas com o pouco de água que ainda restava. A onça, impaciente, arranhou-se.

- Solta a noite agora mesmo, o que está esperando? - gritou ela, atirando-se sobre Karu
Bempô.

Antes que o jovem entendesse o que estava acontecendo, a onça arrancou a bolsa das mãos de Karu Bempô, pulou para as urzes e abriu-a.

Uma densa escuridão caiu sobre a selva, surpreendendo a todos. Animais e pessoas procuravam caminhos para voltar a suas casas e colidiam uns com os outros. Mas o pior foi
aquilo que ocorreu com as serpentes da chefe Surucucu: elas se atiraram sobre a jarra, empurrando-se umas às outras, e cada uma delas passou nas presas tanto veneno quanto
podia. Em vão Surucucu tantava acalmá-las, dizendo que havia veneno suficiente para todas. Por fim, acabaram derrubando a jarra.

Mas quando, ao final de uma longa noite, voltou o dia, todos puderam perceber as conseqüências do que a onça havia feito: as serpentes tinham-se tornado inimigas poderosas e audaciosas que, com suas presas envenenadas, matavam todos aqueles de quem se
aproximavam. Apenas o povo das Jibóias não foi atingido, e sempre avisava os índios com sua matraca.

Depois desse episódio, as serpentes nunca mais foram amigas – cada uma procura viver sua vida, sem se preocupar com a dos outros.

Os Munduruku e os outros animais, por sua vez, adoraram ter conseguido a noite de volta. Assim, podem descansar durante a noite para iniciar um novo dia mais dispostos e
alegres.

(MUNDURUKU, Daniel. As serpentes que roubaram a noite e outros mitos. São
Paulo: Peirópolis, 2001. p. 28-34.)

Leia o texto com atenção e responda:

1. Em que tempo ocorreram os fatos narrados? Com que intenção o narrador diz que naquela época a onça ainda não tinha garras?

2. Nesse tempo, os animais falam, há harmonia entre os seres. O desequilíbrio é provocado pela ausência da noite.
a) Copie no caderno passagens do texto que mostram esse desequilíbrio.
b) Releia o segundo parágrafo: num certo momento, o sol é tratado como pessoa. Copie essa passagem e indique as palavras que caracterizam o sol dessa forma.

3. Que fato fez os índios descobrirem que as serpentes haviam roubado a noite?

4. Quando Karu Bempô inicia suas negociações com a Surucucu, ele diz, após se apresentar: “Dizem que as serpentes esconderam a noite. Se me devolverem a noite, darei arco e flechas como presente do meu povo”. Observe que ele escolhe as palavras: em vez de dizer que as serpentes roubaram a noite, ele diz que elas a esconderam. Ele também evita dizer o nome de qualquer pessoa (“Dizem que as serpentes escondem a noite”.). Por que ele faz isso? Na sua opinião, ele é um bom negociador?

5. Releia todo o trecho em que Karu Bempô negocia com a Surucucu.
a) De quantas entrevistas ele precisou para conseguir o que queria? Que avanços você notou em cada negociação?
b) Quando o guerreiro se aproxima da serpente pela primeira vez, é recebido com aspereza: “Quem se atreve a me incomodar? – gritou a serpente, erguendo a cabeça”. Na segunda vez, a recepção já foi diferente, pois o narrador informa: “Dessa vez, Surucucu
estava esperando-o”. Por que essa mudança de comportamento?

6. Surucucu é a representante das serpentes; Karu Bempô, do povo indígena. Eles são
representantes porque têm valor e merecem essa distinção. Por isso, não agem por conta própria, mas em nome do seu povo. Copie do texto passagens que justificam essas afirmações.

7. Com sabedoria e negociação, Karu Bempô conseguiu aquilo de que todos tanto precisavam: a noite. Porém, logo que acordaram da longa noite de descanso, perceberam o poder que as serpentes haviam adquirido. Em outras palavras: conseguiram uma coisa boa, mas, junto, veio uma ruim. Que relação você vê entre esse fato e a realidade?

8. Os mitos explicam a origem das coisas ou por que as coisas são de determinada forma.
Além de explicar como o povo indígena recuperou a noite, que outros fatos esse conto esclarece?

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