contos indígenas

contos indígenas
Elisângela Pimenta

domingo, 10 de julho de 2011

COMO APARECERAM OS ANIMAIS

Motivo dos índios caingangues

Depois do dilúvio, a Terra ficou desabitada. Salvaram-se alguns homens da tribo dos caingangues, mas nenhum dos animais que antes viviam pelas matas e campos.
Sem o trinado dos pássaros e os gritos dos animais, o silêncio das noites era aterrador. E muito triste a solidão dos dias. Com medo das trevas, os índios acendiam fogueiras para dormir ao seu redor. Continuamente, pediam a Tupã que mandasse bichos para o mato e soltasse aves no céu.
Afinal, Tupã compadeceu-se e resolveu atendê-los.
Mandou então Cadjurucre, herói já morando no céu, que descesse à Terra e criasse animais. Deveria também dizer a cada um deles quais os seus modos e meios de vida, costumes, alimentos, obrigações.
Cadjurucre descia todas as noites, trabalhava e voltava ao céu à primeira luz da aurora. Com o orvalho recolhido às folhas da taioba, umedecia as cinzas e os carvões da primeira fogueira acesa pelos homens, passado o dilúvio. Usando a mistura, modelava os animais. Enquanto seus dedos davam forma aos bichos, repetia.as ordens de Tupã aos futuros moradores dos matos, campos e rios.
Na primeira noite fez a onça, que é a rainha da selva. Na segunda, o guariba, que domina as altas árvores. Em seguida, o gavião-de-penacho, o gambá, a arara, a guaiquica, o jacaré, a capivara, a pacarana, o veado e uma infinidade de aves e peixes.
Seu trabalho tomou muito tempo. Ensinou a suçuarana a miar, o veado a correr e a saltar, o macaco a trepar pelos troncos e cipós. Fez o tatu cavar buraco, mandou a tartaruga nadar, quando estivesse no rio, e caminhar, quando estivesse em terra. Ao amanhecer, o bicho criado durante a noite sumia rumo a sua morada.
Certa manhã, de volta ao céu, ouviu de Tupã:
— Basta de criar animais. Céu e Terra estão de tal modo cheios que eles já lutam entre si. Há caça suficiente para os homens. Não precisa voltar à Terra!
Cadjurucre explicou:
— Restam três carvões e um punhado de cinzas.
Diante disso, Tupã concedeu:
— Na próxima noite, você criará o último animal. Não deixe sobras das cinzas e dos carvões. Depois, descansará. A floresta, o campo, as águas e o céu estão cheios de vida.
Ao anoitecer, o enviado de Tupã começou a trabalhar com grande vontade. Queria aproveitar todo o material sobrado da primeira fogueira.
Fez coisas extravagantes Modelou uma cauda longa e larga, um corpo grande e forte, braços robustos, unhas compridas e afiadas. E um focinho mais longo, bem mais longo do que o focinho dos outros bichos. Não poupou nada. Nem um cisquinho de carvão, nem uma pitadinha de cinza, O último bicho estava saindo o mais desproporcionado da criação!
Trabalha e trabalha, põe uma coisa daqui, um pelo dali, uma mancha deste lado, uma cor mais forte do outro, e de repente viu-se surpreendido pelo anunciar do dia. E não havia terminado o trabalho! Faltavam, ao estranho animal, a língua e os dentes!
Clareava. Devia voltar ao céu.
Cadjurucre, num gesto rápido, colheu uma folha de capim, longa, macia e flexível, e enfiou-a na boca do animal. Já não tinha tempo para outra coisa. O Sol nascia!
De partida, disse ao bicho que acabava de criar:
— Essa é a sua língua. Você já pode falar. Corra para o campo que o dia vem nascendo.
Mas o bicho não se moveu, como que esperando por mais alguma ordem.
Cadjurucre, subindo para o céu, perguntou:
— E então?! O que espera?! A criação está terminada. Não posso fazer mais por você!
O animal, erguendo-se sobre as patas traseiras e apontando para a boca disforme, gritou:
— Se não possuo dentes como os outros animais e se tenho uma língua comprida e macia, mas pouco resistente para as comidas duras, o que é que vou comer?
Quase desaparecendo entre as nuvens e os raios do Sol, Cadjurucre aconselhou:
— Pois, se não tem dentes, deve alimentar-se do que não precisa ser mastigado: formigas! Para apanhá-las, use a língua comprida e ágil!
Já com fome, o bicho partiu à procura de formigueiros. Ainda anda pelo mato e pelo campo, com o longo focinho e a cauda em forma de leque, à cata de formigueiro. Quando o encontra, mete por ele a língua e recolhe o seu alimento: formigas.
Por isso, os índios chamaram esse animal pelo nome de tamanduá, que para eles quer dizer: caçador de formigas!

DONATO, Hernâne. Contos dos meninos índios. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2006.


UM CONSELHO CONTRA O CONSELHEIRO

Motivo dos índios guaicurus

A última coisa que Tupã criou, neste mundo, foi o homem.
Havia criado os rios, as plantas, os animais e as aves. Por fim, as tribos. Bondoso, antes de permitir que os homens saíssem a povoar a Terra, mandou distribuir presentes que fossem de utilidade para a vida.
A medida que ia partindo, cada tribo recebia um conselho ou um dom especial. Uma delas aprendeu a cultivar a mandioca e o algodão, para que nos tempos de carestia pudesse viver com o produto das lavouras. A outra foi ensinado fazer canoas e preparar o timbó, para que se dedicasse à pesca.
Ao chegar a vez da tribo guaicuru, já não havia o que dar. Assim, a sua gente saiu pelo mundo entregue a si mesma.
Mas não se conformou com isso. Decidiu pedir a Tupã o favor especial ao qual se julgava com direito. Toda a tribo, homens e mulheres, idosos e jovens, saiu à procura de quem pudesse levar sua queixa ao céu.
Pediram ao vento, que sopra livre e violento pelos descampados, para que, com sua poderosa voz, levasse a Tupã o pedido dos guaicurus.
Mas o vento estava apressado. Passou, encrespando as águas, revolvendo as folhas, e nem sequer ouviu a súplica dos índios.
Pediram ao relâmpago, que rasga o céu e sacode a terra. Mas ele fulgurou e desapareceu, sem lhes dar atenção.
Foram para junto da árvore mais alta da floresta, aquela que quase tocava as nuvens com a sua ramagem, e lhe pediram que nas suas conversas com as estrelas dissesse do desejo da tribo. A árvore, imóvel sob o sol do meio-dia, dormitava e não os atendeu.
Assim caminhou a tribo. Cada vez mais desgostosa. De planta em planta, de animal a animal. Poucos respondiam. Desses poucos, um dizia que suas asas não o levariam tão alto e outro se desculpava alegando que as raízes o prendiam ao chão.
Um dia passaram debaixo do ninho do caracará. O gavião, ouvindo como se queixavam, intrometeu-se:
— Vocês não têm razão!
Os índios estranharam:
— Como assim?! Somos o único povo a não receber de Tupã um favor especial. E contra isso que reclamamos.
O caracará, sempre disposto a tirar proveito dos sofrimentos dos outros, ideou plano que lhe trouxesse vantagem.
— Vocês não entenderam o desejo de Tupã. O presente dado aos guaicurus é maior e melhor do que todos os outros. Se não receberam nada especial é porque tudo quanto existe é de vocês. E de vocês a liberdade de se apoderar do que aparecer em seu caminho. Podem, portanto, caçar e tomar quanto encontrarem e desejarem.
Os índios, admirados e surpresos, pediram ao gavião que explicasse melhor qual o presente que, sem saber, haviam recebido.
O espertalhão repetiu:
— E a liberdade de tomar para si tudo quanto encontrarem em seu caminho e lhes agradar.
Depressa os homens se convenceram de que o caracará tinha razão. O cacique insistiu:
— Então podemos matar tudo o que encontrarmos?
A ave rapineira, certa de que os guaicurus fariam, daquele dia em diante, grandes caçadas das quais ela tiraria a melhor parte, assegurou:
— Sim, tudo!
Rápido, o cacique armou o arco de guerra e visou o caracará.
Percebendo o perigo, o gavião mau conselheiro tentou fugir. Mas ainda não havia aberto de todo as asas, e a flecha partira do arco...
E era uma vez um caracará!
A tribo dos guaicurus tomou para seu símbolo a figura do caracará que os ensinou a caçar, e desde esse dia seguiu de perto os seus conselhos.

DONATO, Hernâne. Contos dos meninos índios. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2006.


OS CURUMINS QUE SE TORNARAM ESTRELAS

Era uma vez sete orfãozinhos.
Quando ficaram sem os pais, foram viver com a avó, índia tão velhinha que mal podia cuidar de si mesma. No entanto, repartia de bom coração, e com amor, as suas pobres coisas entre os sete netos.
Mas não demorou e a boa velha morreu também.
Os curumins ficaram sem parente com quem morar.
Passavam o dia com fome e a noite com frio.
O maiorzinho saía à procura de alimentos, trazendo, às vezes, frutas, mel e raízes. Mas era pequeno demais para subir às árvores e fraco para tentar a caça. Com isso todos sofriam, pois raramente tinham alimento suficiente.
Uma noite, deitados, bem apertadinhos para aquecerem uns aos outros, ouviram chegar o vento.
Nas paredes de palha da cabana antiga, o vozeirão do vento cantava assim:
—Uh!... Uh!... Uh!...
O mais velho dos irmãos lembrou:
O vento vem do céu e está quase sempre contente! Não é um grande brincalhão? Ele encrespa as águas, despetala as flores, derruba os frutos, revolve os galhos. O lugar onde ele mora deve ser o país da alegria! Vamos todos para o céu?! Lá, certamente, não hão de faltar peles para nos cobrir, frutos e mel para nos alimentar, brinquedos para nos divertir e mãos amigas para nos acariciar!
Todos concordaram e se aprontaram para subir ao céu. O resto da noite ficaram imaginando como seria a vida lá em cima.
Ao amanhecer, o vento que vinha de regresso, depois de percorrer toda a Terra, ouvindo o desejo dos pequenos e sentindo pena deles, começou a soprar, devagar, devagar...
Levados pelo vento, os curumins foram subindo, subindo, passaram pelas nuvens, mais alto, sempre mais alto... Quando anoiteceu, estavam quase no céu. Mas já era tarde, e o vento devia voltar a soprar pelas terras de todos os homens, pois essa é a sua obrigação, noite após noite. Deixou os meninos ali, um pouco abaixo do céu, um pouco acima das nuvens!
Tupã, vendo os pobrezinhos naquela posição incômoda, nem na terra, nem no céu, transformou-os em estrelas. Formaram a constelação que os índios chamam “Sete-Estrelo” — e os civilizados, “Plêiades” —, em homenagem aos irmãozinhos que, depois de muito sofrer na Terra, receberam no céu luminosa recompensa!

DONATO, Hernâne. Contos dos meninos índios. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2006.

Nenhum comentário:

Postar um comentário